
Há sete anos, o médico cardiologista com PhD pela USP Thiago Liguori pivotou sua carreira e migrou para a área de tecnologia em saúde. Desde 2017, ele acompanha de perto a transformação do setor e vivenciou todo o processo de surgimento e adesão da inteligência artificial (IA) generativa. Para o curto prazo, Liguori projeta que o principal impacto dessa tecnologia será observado na parte burocrática — inclusive, ele está iniciando uma startup do zero, a Turi, com esse foco.
“Acredito que 2025 e 2026 vão ser anos muito focados na parte administrativa, com atuação mais voltada para áreas burocráticas”, afirma. O backoffice da saúde vai ser disruptado pelas novas ferramentas de IA.”
Especialista em inovação pela Universidade de Stanford, hoje ele é reconhecido como uma das grandes referências no tema e alcançou o status de LinkedIn TopVoice em saúde e inovação. Também é CEO e fundador da Stealth AI Startup, além de ter atuado como Chief Medical Officer da Pipo Saúde, entre 2020 e 2024.
Liguori é um dos palestrantes confirmados da próxima edição do AI Health Frontiers, evento realizado pela Connext Health e que ocorrerá em São Paulo, no dia 4 de fevereiro. Nesta entrevista, Liguori antecipa alguns insights e compartilha sua visão sobre o impacto do IA na saúde.
Connext Health — Qual é a sua avaliação sobre o impacto da inteligência artificial na saúde?
Thiago Liguori — Tenho acompanhado esse movimento de transformação e o que eu tenho visto é que grandes pensadores e gestores (líderes da área de inteligência artificial) todos eles têm uma opinião muito parecida: que a inteligência artificial generativa vai transformar diversas áreas, mas principalmente a saúde, que está no top 3 das indústrias que vão ser impactadas. Dois segmentos que aparecem com bastante frequência: educação e saúde. E a saúde está sempre ranqueada como a primeira, segunda ou terceira área que vai ter o maior impacto. Tenho muita confiança nessa transformação nos próximos cinco a 10 anos, tanto que estou investindo forte e começando uma startup do zero, chamada Turi, que é uma assistente IA para médicos, um copiloto médico, que ajuda a fazer a transcrição da consulta, sumarização, que é o resumo e gerar documentos.
Connext Health — Como os profissionais da área estão enxergando essas mudanças?
Liguori — Eu dei duas palestras no ano passado, que me chamaram muito a atenção, uma no Congresso Brasileiro de Anestesiologia e outra no Congresso Brasileiro de Pediatria do Hospital Sabará. Nas duas, a primeira pergunta que recebi foi: "a IA vai substituir o médico ou o profissional da saúde?". A minha opinião é que não. Ela vai, na verdade, aumentar e potencializar a nossa capacidade de impactar a vida dos pacientes e gerar cuidados. Estou muito conectado com isso.
Connext Health — Quais são as suas perspectivas quanto às aplicações da inteligência artificial no curto prazo?
Liguori — Acredito que 2025 e 2026 vão ser anos muito focados na parte administrativa, com atuação mais voltada para áreas burocráticas — aqui estamos falando desde como um profissional da saúde documenta algo a como uma guia de um pedido de exame é processada, vai para o plano de saúde e volta com a liberação. O backoffice da saúde vai ser disruptado pelas novas ferramentas de IA.
Muitas empresas que estão atuando na área de IA na saúde, a maior parte delas não está mais na parte de teste, já estão em produção, ou seja, o produto já está pronto e validado, já tem clientes pagantes e muitas delas já têm cases de ROI (retorno sobre o investimento). Essa onda, agora, deve vir para o Brasil. Vamos sair um pouco dessa fase, de testar para ver se funciona, para a implementação e coleta os resultados de produtividade e ganho operacional.
Connext Health — E nos próximos 5 a 10 anos, o que vem pela frente?
Liguori — É difícil projetar o futuro, porque é uma tecnologia que muda muito rápido. Essa nova onda de desenvolvimento tecnológico surgiu há dois anos (novembro de 2022) e olha quanta coisa mudou e como esse assunto entrou em pauta e ainda continua crescendo. Num horizonte mais longo é difícil tangibilizar qual vai ser o ganho real, mas alguns marcos que vão chegar e o desafio vai ser como a gente lida com essas tecnologias para poder melhorar a vida das pessoas.
O primeiro é ponto: o que vai acontecer quando a gente tiver modelos de linguagem (LLMs), que têm uma capacidade de conhecimento técnico maior do que o médico tem? Como essa ferramenta vai ser utilizada? Qual vai ser a utilidade disso no dia a dia? Como os profissionais da saúde vão lidar com isso? A medida em que se tem esses modelos, surge uma série de preocupações éticas e morais. Então, tem muita coisa para ser discutida ainda, mas eu sou muito otimista com o futuro.
Acho que essas ferramentas vão fazer com que a gente consiga finalmente preencher um gap, que temos hoje, de cuidado. Hoje, no Brasil, temos um gap com mais pessoas precisando de cuidados de saúde do que profissionais da saúde preparados e treinados para atendê-las. Isso é mais evidente ainda no SUS. Há municípios, hoje, que não têm nenhum médico ou que não têm médicos especialistas. Como é que podemos usar essas ferramentas de forma ética, moral e responsável para tentar endereçar isso, entregar mais cuidados em saúde e ajudar mais pessoas, eventualmente até gastando menos? Como é que se otimiza custos? Saúde sempre foi, historicamente, um serviço caro e com custos que têm aumentado em média de 10 a 15% ao ano (bem acima da inflação). Como a gente consegue fazer com que esses custos não só estacionem, mas até que diminuam?
Connext Health — Conte um pouco sobre sua trajetória e como ela te trouxe até a IA.
Liguori —Sou médico cardiologista, já atuo há mais de 15 anos como médico e em 2017 foi o ano em que decidi mudar minha carreira para focar na área de tecnologia em saúde. Desde então, tenho atuado em diversas empresas e startups e o que antes era uma curiosidade, virou um conhecimento e, assim, eu me tornei um dos especialistas em tecnologia e inovação em saúde.
O que isso gerou foi uma curiosidade também de gerar um projeto próprio. Atuei em diversas startups diferentes, mas sempre tive essa vontade de começar um projeto meu do zero. Daí nasceu a Turi, que começou no final do ano passado. Estou superanimado. Acho que a tecnologia tem o potencial de ajudar muito os pacientes, entregar cuidado, fortalecer a relação entre profissional da saúde e paciente, agilizar os serviços, aumentar a percepção de qualidade, melhorar os desfechos clínicos (reduzindo morbidade e mortalidade). Estou bem otimista com o que vai acontecer no futuro.
Connext Health — De 2017 para cá, a tecnologia na área da saúde avançou bastante. O que tem chamado a sua atenção nesse processo de transformação?
Liguori — Tenho olhado para tecnologia de forma mais macro. O que temos hoje de tecnologia em saúde e que são coisas super relevantes: o uso de chatbots para interação com pacientes (que é anterior à inteligência artificial generativa), tem a jornada em cuidado de saúde digital, existem os dispositivos vestíveis (werables), a questão do processamento de imagem. A inteligência artificial nos dá a percepção de que é algo novo, mas é uma tecnologia desenvolvida desde a década de 1950. Então, é uma tecnologia que já tem muito tempo, que passou por diversas fases — pelo hype e pelo inverno, que é quando ninguém quer falar, investir ou se aprofundar. Se pegarmos de 2010 a 2020, por exemplo, houve um investimento muito grande para processamento de imagem na radiologia para laudos automatizados, avaliação de anormalidades em exames de raio-x, tomografia e ressonância.
Eu já vinha olhando para essas tecnologias e estava inserido nesse contexto, mas claro que, com essa transformação que aconteceu, de mudança de paradigma em 2022, ela mudou muita coisa. A IA generativa, na verdade, é um braço do aprendizado de máquina (machine learning). A IA tem diversas frentes de atuação e machine learning é uma delas. Dentro de machine learning temos a IA generativa, os modelos de linguagem grandes (LLMs).
Entender como funciona essas tecnologias, o que acontece por trás, os benefícios, os riscos, as limitações é algo que eu já tenho feito há algum tempo e que me ajudar a compreender melhor como essa tecnologia pode ou não ser aplicada dentro de diferentes frentes de atuação na saúde. É empolgante ver o que vai acontecer tanto no curto prazo, de implementação com soluções mais aplicadas à burocracia, mas também no longo prazo, gerando impacto direto na ponta, com o paciente. Claro que sempre com muito cuidado e responsabilidade, mas é um futuro inevitável essa melhoria relevante que veremos nos próximos anos.
Connext Health — Nesse contexto, qual é a importância do conhecimento para os profissionais da saúde, médicos e lideranças? Como e por que devem entender melhor a IA?
Liguori — Quando essas tecnologias estão começando, é muito comum a gente ter a percepção de que todos os profissionais precisam se aprofundar e entender no detalhe como essas tecnologias funcionam. Isso não necessariamente é verdade. Por exemplo, carros da Tesla têm um modo de direção chamado semiautônomo, em que o motorista consegue guiar praticamente sem usar as mãos ou os pés e o carro praticamente anda sozinho (não é totalmente autônomo). Isso já é bem relevante, porque apoia o motorista ao dirigir. A maior parte dos motoristas que usam o carro e usam esse modelo de direção não precisam ter um conhecimento profundo sobre a tecnologia que está por trás disso, que é a inteligência artificial, mas precisam entender minimamente como funciona a base dessa tecnologia, para que ela funciona, quais são as limitações e quando o motorista deve entrar em ação, quando ele acha que tem algo errado e como ele consegue identificar que tem algo errado.
Acho que vamos passar por um momento parecido na saúde. Existe um conhecimento básico que os profissionais vão precisar ter para poder usar essas soluções e até mesmo contestar quando o resultado delas não for adequado para o caso do paciente ou no contexto em que estão resolvendo burocracia e questões administrativas. E vai ter uma parcela menor de profissionais que vão querer se aprofundar bastante nesse tema, que vão estudar à fundo como funcionam, para que serve, como são criadas essas tecnologias e como são treinadas. Estamos num momento que tem bastante gente empolgada com isso.
No fim do dia, quando se tem uma nova tecnologia, ela cria uma oportunidade porque coloca todo mundo no mesmo nível. Hoje, é difícil falar que existe alguém que seja super expert em IA generativa — são pouquíssimas pessoas no mundo, porque é uma tecnologia muito nova ainda. Claro que existem especialistas em machine learning, IA, deep learning, processamento, mas toda disrupção abre oportunidade para que novas pessoas possam estudar, se aprofundar e se tornar especialistas nessa nova área. Querendo ou não, se a gente olhar para um horizonte de 10 anos, toda instituição de saúde vai ter pelo menos um agente IA ou solução de IA embarcada dentro da jornada de cuidados dos seus pacientes. Quem aproveitar essa oportunidade para se capacitar, vai colher os frutos do futuro.
Comentários